sábado, 3 de janeiro de 2009

A espécie em progesso

A grande arte está em admirar nossa espécie, apesar dos pesares... E com mil erros e muitas cabeçadas em sólidas paredes, o homem progride, em sua eterna tendência em mudar, como um coro de aleluias eternamente trocando de solistas ¹.

O POVO CONTINUARÁ

(Carl Sandburg)

O povo continuará.
Aprendendo ou fazendo loucuras o povo continuará.
Será logrado, vendido e revendido
e voltará à mãe-terra para nutrir suas raízes.
O povo é tão bizarro ao progredir e regredir,
que não podemos rir de sua capacidade de topar a parada.
O mamute descansa entre os seus dramas ciclônicos.

O povo tantas vezes indolente, cansado, enigmático,
é um vasto amontoado de indivíduos a falar:
“Vou ganhando a vida.
Faço o que é preciso pra ir levando
e isso me come o tempo todo.
Se eu tivesse mais tempo
podia fazer mais pra mim mesmo
e talvez pros outros.
Podia ler e estudar,
discutir as coisas,
descobrir certas coisas.
Mas isso toma tempo.
Ah, se eu tivesse tempo!”

O povo tem duas caras, uma trágica, a outra cômica:
herói e desordeiro: espectro e gorila,
geme com sua boca torta de gárgula:
“Eles me compram e me vendem... não passo dum jogo...
um dia eu me solto...”

Depois de haver ultrapassado
as margens da necessidade animal,
a linha feroz da mera subsistência,
o homem chegou afinal
aos ritos mais profundos de seus ossos,
às luzes mais leves que os ossos,
chegou ao tempo de repensar as coisas,
à dança, à canção, ao conto,
chegou às horas doadas ao devaneio,
depois de ter ultrapassado a linha.

Entre as numeraveis limitações dos cinco sentidos
e os anseios infindos do homem pelo eterno,
o povo se agarra ao chato imperativo
de trabalhar e comer, enquanto faz um gesto,
quando se apresenta a ocasião
para as luzes além da prisão dos cinco sentidos,
para dádivas mais duradouras que a fome
ou a morte.
Esse gesto mantém-se vivo.
Proxenetas e mentirosos o violaram e enxovalharam.
Mas continua vivo esse gesto
estendido às luzes e às dádivas.

O povo conhece o sol do mar
e a força dos ventos
que chicoteiam as esquinas da terra.
O povo vê a terra
como a cova do descanso e o berço da esperança.
Quem mais fala em nome da Família Humana?
O povo anda afinado
com as costelações da lei universal.
O povo é policromia,
espectro e prisma,
apresado num monolito que se move,
um órgão a soar temas cambiantes,
clavilux de poemas coloridos
nos quais o mar oferece névoa
e a nevoa se dissipa em chuva
e o poente do Labrador se reduz
a um noturno de estrelas limpas,
sereno, acima do jorro em chuveiro
das luzes boreais.

O céu das usinas de aço está vivo.
O fogo irrompe em branco ziguezague
detonado dum crepúsculo metálico.
O homem está vindo atrasado.
O homem contudo vencerá.
Irmão pode ainda marchar ao lado de irmão:
esta velha bigorna se ri de muito martelo partido.
Há homens que não se vendem.
Quem nasce no fogo, vive bem no fogo.
Estrelas não fazem barulho.
Ninguém pode segurar o vento.
O tempo tudo ensina.
Quem vai viver sem esperança?

Na escuridão, com um grande fardo de aflições,
[o povo marcha.]
Na noite, com uma pazada de estrelas no alto,
[para sempre o povo marcha.]
"Pra onde? Mais o quê ainda?"


Obs: Grifo meu
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¹ DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. Martins Fontes, 2003.

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